CURADORIA/ CURATOR PRESENTATION
Nesta edição da Mostra de Filmes de Arquitetura em Brasília, Cinema Urbana trouxe a proposta do tema “Memórias em Construção”, com o objetivo de instigar o debate acerca da noção do patrimônio e dos processos de construção da memória na sociedade contemporânea, marcada pela globalização e seus cenários de dominação e apagamentos. O patrimônio, quando compreendido como memória, se apresenta no território vivido entre os tempos que se cruzam - passado, presente e futuro -e que acontecem juntos na cidade.
A partir do começo deste século, grandes fluxos de imigração, turismo em massa, aumento da população nos centros urbanos e novas formas de sociabilidades mediadas pelos aparatos tecnológicos mobilizam novas formas de consumo e modos de pertencimentos. Uma nova economia, com viés mais criativo, passa a conceber a metrópole como transcendência, como uma fonte de poder mágico, que não emana de nenhum elemento específico(diversidade de mobilidade, novidades e grandiosidades arquitetônicas, planos urbanísticos originais, etc.), mas da cidade em sua totalidade.
Os filmes trazem à tona narrativas reais e simbólicas que revelam e abrigam rememorações, afetos, disputas, anseios, possibilidades. Apresentam, também, relações entre o construído e o imaginado que nos ajudam a refletir sobre a forma como atualmente vivemos e narramos as nossas cidades. Desta forma, a curadoria do festival, ciente das complexas redes de intrincados sistemas de códigos e símbolos, justamente por sua natureza polissêmica, quis trazer na orientação curatorial um repertório amplo de marcas que expõem as assimetrias do cenário urbano mundial, abordadas nesta temática pela escolha do que deve ser lembrado e celebrado, e o que pode ser destruído e apagado.
Nesta seleção de mais de 50 filmes trazemos o nosso desejo de ampliar as visões acerca da relação do cinema com as questões urbanas, como uma das plataformas fundamentais para se pensar o binômio - arquitetura e urbanismo - dentro das articulações das narrativas audiovisuais e tecnológicas. São narrativas que, no seu conjunto, apresentam a pluralidade dos espaços do mundo, lugares que pouco vemos e pouco sabemos a respeito.
Revelou-se na sedimentação do material trazido pelos filmes, que ao lançar o tema e provocar a discussão a respeito do patrimônio e da memória, estarmos, de fato, sendo surpreendidos pela urgência do tema da sobrevivência. Os filmes retratam a sobrevivência /existência de povos, lugares, memórias, desejos, formas de vida e de sonhos. O afloramento desse tema pode ser associado ao livro Sobrevivência dos Vaga-lumes(Editora UFMG, 2011) no qual Didi-Huberman retoma a inquietação de Pasolini ao declarar o desaparecimento dos vaga-lumes, que, entre diversos significados possíveis, refere-se metaforicamente aos pequenos lampejos de resistência, frágeis, mas completos de desejo. E que existem momentos de exceção em que os seres humanos se tornam vaga-lumes - seres luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto tais - sob nosso olhar maravilhado(p.52).
Dentre os 57 filmes selecionados há exemplos de vários modos de sobrevivência. O filme There Was a Country, do diretor curdo Hebun Polat, que vive na Turquia, relata sobre a sobrevivência como povo ao retratar a brutalidade da guerra no ataque bárbaro contra os curdos. A barbárie da guerra é trazida também em The Sea Swells (República Islâmica do Irã, Amir Gholami, 2018), em que acompanhamos um homem em seu abrigo dentro da água e suas táticas de sobrevivência.
Encontramos em The Hive (Polônia, Jeremi Skrodzki, 2018) um exemplo de sobrevivência como lugar ao mostrar uma comunidade que vive da terra e de seu cultivo numa área verde que resiste no centro de Varsóvia. As reconstruções e os novos usos dados aos edifícios abandonados ou destruídos aparecem em Reko City (Alemanha, Jörn Staeger, 2017) e em Dreaming Squares (Irlanda, Paddy Cahill, Shane O'Toole, 2018).
A sobrevivência como tática para superar as precariedades das condições de vida em cidades imensas, como na série Born and Raised in the Ghetto (Johan Mottelson, 2018) em três capitais no continente Africano; ou na Índia, em Abridged (India, GauravPuri, 2019), que nos mostra como a população ocupa e vive os espaços sob as pontes e viadutos. Sobrevivências como modo de imaginar ficções nos gestos cotidianos que irrompem nos caminhos do trabalho manifestam-se em Cabeça de Rua (Brasil, Angélica Lourenço), ou no caminho de casa, como no devaneio do protagonista de Da Curva Para Cá ( Brasil, João Oliveira, 2018),pelos becos e vielas capixabas.
A necessidade cada vez mais crescente no mundo contemporâneo de uma tomada de partido, da escolha entre um ou outro lado, as escolhas limitando-se a somente duas opções, num apagamento da sutileza e da hesitação, é trazida em Aporia (Itália, Salvatore Insana,2019), filme experimental que investiga o momento em que permanecemos encalhados, na hesitação que nos retira do fluxo para avaliar o "se"e o "como", para nos orientar na continuação da ação.
No entanto, vemos que, inclusive os manifestos, as posições tomadas e sedimentadas lutam por uma sobrevivência, como nos filmes que trazem ícones da arquitetura moderna, tentando resistir em meio à cidade global e à especulação imobiliária. É o caso de Facade Colour:Blue (Ucrânia Oleksiy Radynski, 2019) e Niemeyer 4 Ever (Líbano,Nicolas Khoury, 2018).
A sobrevivência como permanência dos símbolos é lembrada em Still Turning (Canadá, Jesse Pickett, 2017) pela reconstrução da roda d’água que deu início à cidade de Lanzhou, e em Lupa (2018), a loba romana que se reproduz em cidades de todo o globo e que foi retratada pela diretora Romena Aurelia Mihai ao constatar que somente na Romênia havia 22 exemplares da estátua. O filme faz a pergunta: qual carga de significados esta estátua, associada à fundação de Roma, carrega até hoje? E que nos instiga saber por quem e por que estão sendo construídas essas lembranças?
Nesse sentido, é a sobrevivência que se expande como desejo, quando vemos Isidora no filme New York Woman (Chile, Martin Pizarro Veglia, 2018), que, ao planejar e desejar viajar para Nova York, funde seu corpo e sua imagem à da cidade. E, retomando o pensamento de Didi-Huberman, como se pode, portanto, declarar a morte dos vaga-lumes, ou seja, das lembranças, dos desejos, das sobrevivências? Não seria tão vão quanto decretar a morte de nossas obsessões, de nossa memória em geral?
Didi-Huberman responde que, para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência:é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo (p.52). A perspectiva da sobrevivência nas imagens, situada por Pasolini e retomada por Didi-Huberman, pode ser considerada como um gesto político que num lampejo ilumina as trevas e dá possibilidade de pensarmos outros modos de estarmos nelas.
Assim, por meio da Mostra CinemaUrbana, afirmamos nossa crença na potência do cinema em apresentar as cidades e suas paisagens em narrativas que compõe o imaginário e formam o conjunto de suas memórias e sua história. Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? (p.60)
É nesse conjunto de mais de 60filmes, entre os selecionados para a mostra competitiva, convidados e homenageados, que buscamos formar uma constelação, abarcar as mais diversas paisagens para repensar o nosso princípio, nos permitindo enraizar e conservar nossas lembranças, e, ao mesmo tempo, brilhar no conjunto dos pequenos lampejos formando um clarão para, de alguma forma, iluminar nosso futuro.
In this edition of the ArchitectureFilm Exhibition in Brasilia, Cinema Urbana brought the proposal of the theme“Memories under Construction”, with the objective of instigating the debateabout the notion of heritage and the processes of memory construction in thecontemporary society, marked by globalization and its scenarios of dominationand deletion. Heritage, when understood as memory, is presented in theterritory lived between the intersected times - past, present, and future -that happen connected in the city.
From the beginning of this century,large flows of immigration, mass tourism, population growth in urban centers andnew forms of sociabilities mediated by technological apparatuses mobilize newforms of consumption and senses of belonging. A new economy, with a morecreative bias, comes to conceive of the metropolis as transcendence, as asource of magical power, emanating from no specific element (diversity ofmobility, novelties and architectural greatnesses, original urban plans, etc.),but from the city in its entirety.
The films bring out real and symbolicnarratives that reveal and harbor memories, affections, disputes, longings,possibilities. They also present relationships between what was constructed andimagined that help us to reflect on the way we currently live and narrate ourcities. Thus, the festival's curatorship, aware of the complex networks of intricatecode and symbol systems, precisely due to its polysemous nature, wished tobring in the curatorial orientation a broad repertoire of marks that expose theasymmetries of the world urban scenario, approached in this theme by choosingwhat must be remembered and celebrated, and what can be destroyed and deleted.
In this selection of more than 50films we bring our desire to broaden the visions about the relationship ofcinema with urban issues, as one of the fundamental platforms for thinkingabout the binomial - architecture and urbanism - within the articulations ofaudiovisual and technological narratives. These are narratives that, as awhole, present the plurality of the world's spaces, places we see little andknow little about them.
The strengthening of the materialbrought by the films reveals that, by launching the theme and provoking thediscussion about heritage and memory, we are, in fact, being surprised by theurgency of the theme of survival. The films portray the survival / existence ofpeoples, places, memories, wishes, life forms, and dreams. The flowering ofthis theme can be associated with the book Survival of the Fireflies in which Didi-Huberman resumes Pasolini's disquiet bydeclaring the disappearance of fireflies, which, among various possiblemeanings, refers metaphorically to the small flashes of resistance, fragile,but full of desire. And that thereare moments of exception when human beings become fireflies — luminescent,dancing, erratic, untouchable, and resistant beings, as such — under ourastonished gaze.
Among the 57 selected films, thereare examples of various ways of survival. Kurdish director, who currently livesin Turkey, Hebun Polat's film "There Was a Country” talks about survival as a peopleby portraying the brutality of the war in the barbaric attack on the Kurds. Thebarbarism of war is also brought forth in The Sea Swells (IslamicRepublic of Iran, Amir Gholami, 2018), in which we follow a man in hisunderwater shelter and his survival tactics.
We found in The Hive (Poland,Jeremi Skrodzki, 2018) an example of survival as a place by showing acommunity living off the land and its growing in a green area that resists incentral Warsaw. The reconstructions and new uses given to abandoned ordestroyed buildings appear in Reko City (Germany, Jörn Staeger, 2017)and Dreaming Squares (Ireland, Paddy Cahill, Shane O'Toole, 2018).
Survival as a tactic to overcome theprecariousness of living conditions in large cities, as in theseries Born and Raised in the Ghetto (Johan Mottelson, 2018) in threecapitals on the African continent; or in India, in Abridged (India,Gaurav Puri, 2019), which shows us how the population occupies and lives thespaces under the bridges and viaducts. Survival as a way of imaginingfictions in everyday gestures that erupt in the ways of work manifest in Cabeçade Rua (Brazil, Angélica Lourenço), or on the way home, as in the daydreamof the protagonist of Da Curva Para Cá (Brazil, João Oliveira, 2018),through the capixabas alleys andlanes.
The ever-increasing need of taking aside in the contemporary world, for choosing between one side or the other, forchoices limited to only two options, in a deletion of subtlety and hesitation,is brought up in Aporia (Italy, Salvatore Insana, 2019), an experimentalfilm that investigates the moment we remain stranded, the hesitation that pullsus from the flow to evaluate the "if" and the "how", toguide us in the continuation of the action.
However, we see that even themanifestos, the taken and strengthened positions, fight for survival, as in thefilms that bring icons of modern architecture, trying to resist in the midst ofthe global city and real estate speculation. This is the case with FacadeColor: Blue (Ukraine, Oleksiy Radynski, 2019) and Niemeyer 4 Ever(Lebanon, Nicolas Khoury, 2018).
Survival as a permanence of symbols is recalledin Still Turning (Canada, Jesse Pickett, 2017) by the reconstruction ofthe waterwheel that started the city of Lanzhou, and in Lupa (2018), theCapitoline wolf reproduced in cities across the globe and that was portrayed byRomanian director Aurelia Mihai when she found out that there were 22 copies ofthe statue only in Romania. The film asks the question: what burden of meaningdoes this statue, associated with the foundation of Rome, carry to these days?And what makes us wonder by whom and why these memories are being constructed?
In this sense, it is the survivalthat expands as desire, when we see Isidora in the movie New York Woman(Chile, Martin Pizarro Veglia, 2018), when her plans and wishes to travel toNew York fuses her body and image with the city's. And, taking upDidi-Huberman's thinking, how can one, therefore, declare the death offireflies, that is, of memories, desires, survivals? Wouldn't it be as vainas decreeing the death of our obsessions, our memory in general?
Didi-Huberman replies that toknow the fireflies, one must watch them in their current survival: one must seethem dancing alive in the middle of the night, even though that night is sweptaway by some ferocious projectors. Though for a little while. Pasolini'sperspective on survival in images and taken up by Didi-Huberman can beconsidered as a political gesture that illuminates the darkness in a flash andallows us to think of other ways of being in it.
Thus, through the Cinema UrbanaExhibition, we affirm our belief in the power of cinema to present cities andtheir landscapes in narratives that compose the imaginary and form the set oftheir memories and their history. Even though bordering the ground, thoughemitting very dim light, though moving slowly, don't the fireflies draw,strictly speaking, such a constellation?
It is in this set of over 60 films,among those selected for the competitive exhibition, the guest and honored ones,that we seek to form a constellation, embrace the most diverse landscapes torethink our principles, allowing us to take root and preserve our memories, andat the same time, to shine in a set of small glimmers forming a flash in order to,somehow, illuminate our future.