Imaginar mundos possíveis
Liz Sandoval e André Costa
O cinema surgiu porque surgiram as cidades e o desejo de registrar seu movimento, sua agitação. A paisagem urbana se modificou com as salas de cinema, suas placas iluminadas e os cartazes. Os primeiros filmes registravam os acontecimentos cotidianos, o movimento dos trens, as pessoas caminhando nas ruas. A cidade sempre foi o principal tema e cenário do cinema e quase todos os filmes são filmes sobre pessoas vivendo na cidade, nos espaços domésticos, ou cenários, espaços que são arquitetura. A cidade vem sendo moldada pelo cinema, assim como o cinema deve muito de sua natureza às cidades. Tanto diretores quanto arquitetos estão interessados nas maneiras como o cinema constrói espaços na mente, como estruturam nosso “ser no mundo” e articulam a superfície entre a experiência individual e a experiência coletiva. Há uma crescente vontade de explorar as telas da “cidade cinematográfica”.
No mundo cada vez mais urbanizado, as imagens em movimento estão em todos os lugares, e a sua fruição foi modificada. O cinema introduziu mudanças profundas na visão e na concepção do espaço como fator de condicionamento do olhar. Como decorrência, o espaço e a construção, manifestações tradicionais da arquitetura, marcadas hoje pela sobrevalorização da imagem, têm perdido espaço para a esfera da representação da arquitetura. Os edifícios precisam ser compreendidos da mesma forma que os desenhos, as fotografias, os escritos, a publicidade e os filmes. Não apenas porque são mídias por meio das quais apreendemos a arquitetura, mas porque o edifício é também uma forma particular – construída – de representação. “É preciso hoje repensar a arquitetura como mídia”[1].
A arquitetura, de fato, tem se deparado com uma ampliação contundente de seu campo epistemológico[2] – fenômeno que tem a cultura visual no centro de uma renovação da própria arquitetura. Como decorrência, são claros também, na mesma medida, os sinais de uma “crise da imaginação crítica”´[3]. “Colado ao real, ao mundo tal como é, o homem de hoje não enxerga alternativas, não capta as virtualidades escondidas na realidade que se lhe apresenta. Conectado compulsivamente ao imediato, torna-se incapaz de perceber que, por trás das coisas tal como são, há também uma promessa, a exigência de como deveriam ser”[4].
O cinema, operando nesse contexto paradoxal como novo suporte de saberes críticos para a arquitetura, coloca a necessidade de um exercício crítico e interpretativo sobre o espaço em que o arquiteto opera, onde expressa uma forma de pensar, agir e transformar o mundo, para assim propor novas formas de representar a arquitetura e sua relação com o tempo e o espaço. O cinema pode tanto ser utilizado como instrumento de denúncia para a arquitetura, como também proporcionar a construção de novos imaginários e, ao articular-se à crítica da cidade na mediação entre o real e o poético, “imaginar mundos possíveis”.
As utopias, cujos fundamentos têm sido duramente abalados pela história, parecem cada vez mais inviáveis - apesar de paradoxalmente cada vez mais necessárias e urgentes - na medida em que as dinâmicas neoliberais avançam implacavelmente sobre as esferas da vida, fragmentando a experiência da cidade, transformando o espaço em commodity, fazendo desaparecer a memória e a própria ideia de lugar. “Quando a utopia se esgota como fonte de transformação o que se perde é o próprio sentido de futuro”[5].
O que resta então diante do esgotamento das utopias? José Muñoz busca substituir o pessimismo político, a frustração e a esperança subjacentes à ideia de utopia pela noção de “possibilidade”[6]. A possibilidade - não exatamente em posição de negação à utopia, mas no sentido de ultrapassamento de seus pressupostos teóricos - surge como um tipo de potência aberta, indeterminada e eminente. O possível é um modo de presença em suspensão, prestes a acontecer, algo que está aí como ideia e como potência, pedindo passagem, precisando ser ativada, atravessada pela afirmatividade da ação criativa.
Para o autor, a utopia (r)existe nas pequenas ações do quotidiano, nas manifestações diárias da vida, nas vivências despercebidas, nas invenções subjetivas de outros modos de ser no mundo. É nesse sentido que, hoje, no contexto da relação simbiótica entre o cinema e a cidade, talvez não caiba mais evocar grandes ideais utópicos irrealizáveis – não mais o mundo, a cidade, o lugar e a comunidade ideais. Em vez disso talvez se possa experimentar pela imagem do cinema a descoberta ou a invenção de fissuras na superfície cada vez mais homogênea do mundo e do espaço construído.
As vivências operadas no cotidiano carregam essa potência política, repleta de sentidos que se espalham habilmente pelo imaginário e pela cultura, especialmente no tocante a sua capacidade de modificação sistêmica. Trata-se, pois, como sugerem Montaner e Muxí[7], não apenas de visibilizar e aprender com novas formas de morar e de construir; de reabilitar, requalificar e reocupar mais que construir; de divulgar e replicar projetos experimentais e modelares; ou de entender o urbanismo necessariamente como uma prática política. Para além disso, quando a cidade não se transforma na escala e nas dimensões necessárias, é preciso pontuar nela invenções por vezes performáticas, fazendo deste gesto “a ocupação por excelência”, tornando a cidade um suporte de arte para assim se descobrirem, em meio à precariedade da vida urbana, relações afirmativas com as ruas, redimensionando imaginariamente a dureza da cidade.
No debate em torno da superação - ou do esgotamento - das utopias, é fecunda a articulação renovadora entre “o possível” e a “criação”. Essa relação representa um “domínio inesgotável onde as coisas amadurecem e procuram abrir caminho”[8]. A imaginação - a “imagem-ação” base etimológica do termo “cinema” - é essa capacidade de ver além do que está aí diante dos olhos, de perceber potencialidades que é necessário libertar. Imaginar o possível, para além da utopia, é um exercício em torno das “possibilidades laterais”[9]: perspectivas de reformas da realidade como ela poderia ser, outros modos de organização política e social, mundos possíveis que poderiam vir à tona da realidade.
Se o homem pode ser criador de mundos possíveis, como se inserem essas criações como gestos transformadores da difícil realidade do mundo? Em que medida o cinema, em sua intimidade com a ficção - a própria imaginação criativa - tem revelado antecipadamente esses novos mundos, especialmente como campo de experimentação do pensamento crítico? Que novos mundos são esses – a cidade, a rua, a comunidade, as relações com o espaço e as formas de vida possíveis – que o cinema tem mostrado ou ele mesmo elaborado?
1 COLOMINA, Beatriz. Privacy and publicity.
2 COSTA, Eduardo Augusto. Mudanças Epistemológicas na arquitetura. Entre arquivos, exposições e publicações.
3 MUÑOZ, José. Cruising Utopia
4 DELGADO, Manuel. O animal público
5 SOARES, Luísa Couto. Utopia - realidades possíveis ou possíveis realidades?
6 MUÑOZ, José. Cruising Utopia
7 MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e Política: ensaios para mundos alternativos 8 SOARES, Luísa Couto. Utopia - realidades possíveis ou possíveis realidades?
9 RAYMOND, Ruyer. L’Utopie et les utopies